Interpretar uma obra de arte pode parecer assustador para quem não é especialista, mas esse processo está ao alcance de todos. Não é preciso desvendar um enigma; é, antes, aprender a escutar com os olhos. Tudo começa com um gesto simples, quase óbvio: parar e observar.
Retrato de Tarsila do Amaral. Desconhecido – O Estado de São Paulo – Seção de Periódicos da Biblioteca Mário de Andrade.
Tomemos Abaporu (1928), de Tarsila do Amaral como exemplo. O que essa imagem mostra? Na leitura descritiva, primeiro nível da interpretação, observe as formas: uma figura humana com mãos e pés exageradamente grandes, uma sombra de sol ao fundo, cores vibrantes e um cenário mínimo. Quem é essa figura? Que objetos ou elementos aparecem com frequência?
Essa etapa nos ajuda a ancorar o olhar e a entender o que está representado sem pressa de julgar ou buscar um significado profundo imediatamente.
Abaporu 1928 – Tarsila do Amaral.
No caso de Abaporu, a técnica utilizada é a pintura a óleo sobre tela. Tarsila aplica uma paleta vibrante com predominância das cores verde, amarelo e azul, que remetem diretamente à brasilidade e à bandeira nacional. A obra exibe o recurso do gigantismo nas mãos e pés, um efeito proposital para expressar a ênfase no trabalho braçal e a conexão do homem com a terra. O fundo apresenta cores suaves com azul claro e verde na vegetação, criando contraste com a figura central, que tem contornos definidos e uso de luz que destacam o corpo humano e o sol, reforçando a força e a energia tropical. As pinceladas são visíveis e dão textura, conferindo vida à imagem e ressaltando seu aspecto moderno e simbólico.
Bandeirinhas com Retrato Alfredo Volpi. Crédito: Wikiart
O próximo passo é a leitura sensível — a reação emocional que a obra provoca. Volte o olhar para Bandeirinhas (1960), de Alfredo Volpi. Com seus pequenos quadros coloridos e bandeirolas, essa obra pode despertar um senso de festa, memória ou nostalgia. Ela lembra uma celebração popular brasileira? Causa alegria, calma, ou até inquietação?
Em Bandeirinhas (1960), Volpi trabalha com uma pintura acrílica que marca fortemente o modernismo brasileiro pelo uso de formas geométricas claras e cores sólidas. Sua técnica é marcada pela composição equilibrada das formas (bandeirinhas) que parecem suspensas no espaço, além da utilização de gradações sutis para dar volume e profundidade. Essa técnica minimalista enfatiza a simplicidade e repetição, reforçando uma sensação de festa popular e identidade cultural através da abstração formal.
Esse contato emocional é importante porque a arte é um espelho cultural, mas também um diálogo entre obra e espectador. Não é necessário que todos sintam o mesmo; o que importa é que a arte provoque algo.
Mas as imagens não existem isoladas no tempo e no espaço; seu significado muda conforme seu contexto.
Independência ou Morte – Pedro Américo (1988).
Na obra histórica Independência ou Morte (1888), de Pedro Américo, a técnica é acadêmica e detalhista. Ele usou óleo sobre tela para criar uma composição grandiosa que mistura realismo com idealização, típica do Romantismo tardio. A iluminação técnica ilumina o protagonista sob um céu dramático, enquanto a perspectiva e os detalhes das vestimentas e paisagens são muito precisos. Essa técnica busca criar uma narrativa visual clara e heroica, comunicando a importância histórica do momento.
Pedro Américo (1871).
Essa pintura retrata um momento histórico dramático, mas para interpretá-la completamente precisamos entender quem a pintou, quando e por quê. O século XIX brasileiro estava cheio de símbolos de independência e um projeto de construção da identidade nacional. Compreender isso faz a obra ganhar outra dimensão.
Procurar nomes, datas e locais ajuda a construir a leitura crítica. A esta altura, a pergunta deixada no ar muda: o que não está sendo dito? Quais vozes estão ausentes? Quem é representado e quem foi deixado de fora?
Essa perspectiva crítica abre caminho para a leitura simbólica e política.
Em Judite e Holofernes, tema clássico da arte ocidental, podemos questionar o simbolismo da força feminina, da virtude e do poder. A imagem mostra uma cena de vitória, mas, ao interpretá-la, começamos a ver camadas sobre gênero, poder e violência que refletem os valores da época e que ecoam até hoje.
Judite e Holofernes.
Em obras como Judite e Holofernes, que têm várias versões na arte, o uso da técnica barroca destaca o jogo dramático de luz e sombra (chiaroscuro) para enfatizar o conflito e a intensidade emocional. Pintores como Caravaggio usaram esse efeito para criar volumes dramáticos que puxam o olhar e acentuam a tensão da cena, enquanto a composição dinâmica e o detalhamento realista intensificam o impacto visual e simbólico.
Esses aspectos técnicos tornam-se essenciais para aprofundar a interpretação, pois mostram como a construção da imagem — através do uso da cor, da luz, do volume, da textura e da composição — não é apenas estética, mas um veículo de significados culturais, emocionais e históricos. Observar esses detalhes ajuda a construir uma leitura mais rica e consciente das obras, conectando forma e conteúdo em seu contexto específico.
Assim, ao interpretar uma obra de arte, olhe não só para o que está representado, mas também para como está representado, pois o estilo e a técnica são parte vital da mensagem que a obra transmite.
Interpretar arte é abrir caminhos de sentido, não buscar uma resposta única e definitiva. É um passeio por símbolos, histórias, emoções e contextos variados.
E quando falamos da arte brasileira, a atenção precisa ser ainda maior. Obras como as de Tarsila e Volpi trazem na sua criação diversos “Brasis”, diferentes visões, culturas e histórias que convivem e se misturam dentro do país. Por isso, olhar para elas exige sensibilidade para as múltiplas camadas que compõem a identidade brasileira expressa em cada traço e cor.
Portanto, comece pela simples ação de olhar com atenção, passando por sentir o que a imagem provoca e investigar o que está explícito e o que está oculto. Esse é o convite para entrar no universo da arte, onde cada obra conta histórias que esperam serem descobertas por quem se dispõe a observar.
Grandes Museus e Galerias de Arte no mundo todo oferecem visitas guiadas às suas exposições e, eventualmente, acervos. Algumas dessas Galerias e Museus oferecem a possibilidade desse contato com as obras de arte ser intermediada pelo próprio artista com obras em exibição. Essas são oportunidades perfeitas para desenvolver um olhar crítico sobre artistas, obras e curadorias de exposições.
Colunistas

Victoria Ferreira D’Almeida
É designer gráfica há dez anos e graduanda em História, com interesse especial na visualidade e na arte brasileira. Idealizadora do projeto Brasil Arte e Significado (@brasilarteesignificado) desenvolve análises visuais, críticas e conteúdos que exploram as conexões entre cultura, iconografia e memória. Sua pesquisa atual dialoga com temas decoloniais, interseções culturais e história social a partir das imagens, unindo prática criativa, estudo acadêmico e divulgação cultural.
Victória Ferreira D’Almeida – pesquisadora de História da Arte brasileira e idealizadora do projeto Brasil, Arte e Significado – @brasilarteesignificado

Gilberto Marques
É artista plástico formado pela FAAP (SP), com especializações em Comunicação Social, Marketing, Produção Cultural e Museus. Residente em São José dos Campos (SP), sua obra explora volume e abstração para evocar sensações de espaço, vazio e presença, refletindo sobre pertencimento, tempo, memória e valor. Desde 2028 atua como Curador independente.
Gilberto Marques – artista visual e curador independente – @gilbertomrc / @naruagaleria

